Reflexão Organização e Ação no Ensino Superior – uma nova experiência durante a pandemia de COVID-19
A interrupção das atividades nas universidades devido à pandemia de COVID-19 trouxe, ou quiçá evidenciou, inúmeras questões sobre o ensino superior em todo o mundo. As primeiras discussões foram logicamente relacionadas a como manter o ensino remotamente. Em países onde as discrepâncias sociais já são enormes, uma preocupação adicional é como garantir que todos os estudantes sejam contemplados, de forma igualitária, num novo formato de ensino. Se o planejamento do ensino remoto por si só já é difícil, quando se somam a isso fatores socioeconômicos, o desafio é imensamente maior e mais complexo.
É consenso que a solução não é simples, pois deve estar apoiada em questões muito mais profundas e que requerem ações multidirecionais de longo prazo. Além das questões sobre as discrepâncias socioeconômicas e sobre o próprio ensino remoto, as condições emocionais e psicológicas dos estudantes e docentes também precisam ser abordadas. Assim, todos esses aspectos trazidos e/ou reforçados pela pandemia de COVID-19 vêm sendo largamente e globalmente discutidos e diversos projetos de pesquisa realizados buscando conhecer a situação das universidades e construir estratégias de enfrentamento das condições impostas pelo isolamento e pela interrupção das atividades presenciais. Com a intenção de contribuir para essas discussões, trazemos aqui uma experiência que tivemos na UNIFESP.
Quando nos demos conta de que a pandemia duraria muito mais do que imaginávamos e que precisaríamos nos mobilizar intensamente para adaptar nosso sistema de ensino-aprendizagem em um tempo curtíssimo, começamos a buscar formas temporárias de manter algum contato entre estudantes, docentes e universidade, enquanto as atividades curriculares pudessem ser planejadas para operação remota.
Durante as discussões sobre como fazer isso, nos percebemos, estudantes e docentes, muito atordoados e sem uma ideia clara do que fazer diante de uma situação absolutamente inédita; expuseram os receios, preocupações, dificuldades. Os estudantes ingressantes demonstraram ainda mais preocupações, visto, como é sabido, que desconheciam o funcionamento de um curso de graduação e mal puderam conhecer a instituição e as pessoas. Isto deixou claro que o que precisávamos no momento era apoiar os estudantes, os docentes e também uns aos outros da forma mais humana possível e não simplesmente dividir tarefas de acordo com as nossas funções (estudantes, docentes, técnicos, dirigentes).
Assim, ao invés de retomarmos logo as disciplinas curriculares optamos por criar uma nova disciplina que pudesse, ao mesmo tempo, trazer conhecimentos sobre a COVID-19 e o coronavírus, que era uma necessidade clara, e que funcionasse também como este espaço de acolhimento de estudantes e docentes.
Demos início então à disciplina remota de 36h/a que chamamos de Aspectos sociais, emocionais e biológicos da pandemia de COVID-19 Os temas dessa disciplina foram a história do coronavírus, vacina, ciência durante a pandemia, isolamento social e emoções relacionadas, ética, fake news, globalização, o papel das mídias durante a pandemia, lideranças, filosofia, psicologia e educação. Cada docente envolvido contribuiu com o seu conhecimento e duas vezes por semana nos encontrávamos de forma síncrona para conversarmos sobre os temas numa perspectiva multidisciplinar e participativa.
Os resultados foram surpreendentes! Os relatos de estudantes e docentes demonstraram que, mesmo à distância, a disciplina fez com que nos sentíssemos mais próximos uns dos outros, que os encontros trouxeram mais tranquilidade, alívio e conforto, ao mesmo tempo em que possibilitaram que aprendêssemos sobre aspectos científicos relacionados à COVID-19 pensando de uma maneira mais ampla. Os estudantes ingressantes, que mal puderam ter contato com a universidade no início do semestre, reforçaram a importância da disciplina para seu acolhimento e para aproximá-los da universidade.
Um outro ponto que chamou a atenção foi a observação feita pelos alunos de que puderam ter uma visão mais humana dos professores, percebendo que a hierarquia natural das posições não precisa se transformar numa relação de hierarquia humana, que na verdade não existe, mas que, não raro, é imposta. Em consonância com isto, os professores relataram que se sentiram mais próximos dos estudantes e com mais liberdade para dialogar com eles, sendo capazes de compreendê-los melhor.
Além de ter se mostrado uma ótima forma de manter a interação durante o distanciamento social, os encontros permitiram que professores e estudantes pensassem juntos nas questões sobre educação online e ensino misto e híbrido, uma tendência que já vinha há tempos sendo mundialmente estudada e que foi acelerada pela pandemia. Com essas discussões entre estudantes e docentes percebemos que ainda não estamos preparados para uma mudança neste sentido, pois nos faltam principalmente recursos financeiros, organização, estudo e reflexão direcionada. Precisamos de recursos para montar e manter um Sistema de Gestão de Aprendizagem em nossas instituições e para contratar especialistas que deem suporte adequado a estudantes, docentes e dirigentes.
Precisamos (estudantes e docentes igualmente!) de organização, estudo e reflexão direcionada para repensar os cursos de graduação e identificar as possibilidades e as dificuldades de implementação do ensino misto ou híbrido em cada um deles. Repensar os cursos implica em: a) conhecer a geração de estudantes que ingressam e que estão na universidade atualmente, pois há claramente uma inadequação crescente dos cursos de graduação em relação aos estudantes; b) conhecer a realidade do mercado de trabalho e c) considerar a realidade da nossa sociedade, que vem nos mostrando a cada dia o quanto a formação humana é fundamental para a formação profissional.
Cada um desses pontos poderia ser aqui dissecado, mas não faremos isto neste momento. Teremos abordagens específicas para cada um deles mais adiante. Mas já pudemos perceber que, embora recursos financeiros sejam indispensáveis para viabilizar as mudanças necessárias, há atitudes importantes, como as relacionadas acima, que estudantes, docentes e dirigentes podem tomar É preciso que nos organizemos para dedicar uma parte do nosso tempo para identificar os pontos deficientes no nosso atual sistema de ensino superior em cada uma de nossas instituições e cursos. E este processo precisa do envolvimento em massa de estudantes, docentes, dirigentes e técnicos das universidades para que as ações propostas sejam adequadas e realmente resultem em mudanças atitudinais, resultantes de reflexões profundas sobre o aprender e ensinar no ensino superior.
Somente mudando as atitudes de cada um de nós é que promoveremos mudanças no sistema e seremos capazes de fazer com que a educação seja realmente transformadora, assim, a mensagem que deixamos aqui é: vamos refletir e transformar essas reflexões em ações! Estamos muito acostumados a discutir longamente e evoluir pouco para ações decorrentes da reflexão. Nos falta pragmatismo no sentido filosófico, nos falta gerar consequências práticas, conforme posto pelo filósofo americano Charles Sanders Peirce (1839-1914): “o significado de um conceito consiste nas consequências práticas concebíveis de sua aplicação”. Portanto, precisamos evoluir sim em nossa compreensão do que é Educação, mas não podemos parar por aí, pois os resultados de nossas reflexões só serão providos de significado se conseguirmos colocá-los em prática.